Sonho de um sonho de Drummond

 


Sonhei que estava sonhando 

e que no meu sonho 

havia um outro sonho esculpido.


Os três sonhos superpostos 

dir-se-iam apenas elos

 de uma infindável cadeia

 de mitos organizados em derredor de um pobre eu. 

Eu que, mal de mim! sonhava.



Sonhava que no meu sonho 

retinha uma zona lúcida 

para concretar o fluido 

como abstrair o maciço. 

Sonhava que estava alerta, 

e mais do que alerta, lúdico, 

e receptivo, e magnético, 

e em torno a mim se dispunham

 possibilidades claras,

 e, plástico, o ouro do tempo 

vinha cingir-me e dourar-me 

para todo o sempre, para

 um sempre que ambicionava 

mas de todo o ser temia… 

Ai de mim! que mal sonhava. 



Sonhei que os entes cativos

 dessa livre disciplina

 plenamente floresciam 

permutando no universo 

uma dileta substância

 e um desejo apaziguado

de ser um com ser milhares, 

pois o centro era eu de tudo,

 como era cada um dos raios 

desfechados para longe, 

alcançando além da terra 

ignota região lunar, 

na perturbadora rota 

que antigos não palmilharam 

mas ficou traçada em branco

 nos mais velhos portulanos

 e no pó dos marinheiros 

afogados em mar alto.



Sonhei que meu sonho vinha

 como a realidade mesma.

 Sonhei que o sonho se forma 

não do que desejaríamos 

ou de quanto silenciamos

 em meio a ervas crescidas, 

mas do que vigia e fulge 

em cada ardente palavra

 proferida sem malícia, 

aberta como uma flor 

se entreabre: radiosamente.


Sonhei que o sonho existia

 não dentro, fora de nós, 

e era tocá-lo e colhê-lo,

 e sem demora sorvê-lo,

 gastá-lo sem vão receio

 de que um dia se gastara.

 Sonhei certo espelho límpido

 com a propriedade mágica 

de refletir o melhor,

 sem azedume ou frieza

 por tudo que fosse obscuro, 

mas antes o iluminando, 

mansamente o convertendo 

em fonte mesma de luz.

Obscuridade! Cansaço! 

Oclusão de formas meigas! 

Ó terra sobre diamantes! 

Já vos libertais, sementes, 

germinando à superfície 

deste solo resgatado! 



Sonhava, ai de mim, sonhando

 que não sonhara… Mas via

 na treva em frente a meu sonho,

 nas paredes degradadas, 

na fumaça, na impostura,

 no riso mau, na inclemência, 

na fúria contra os tranquilos,

 na estreita clausura física,

 no desamor à verdade, 

na ausência de todo amor, 

eu via, ai de mim, sentia 

que o sonho era sonho, e falso.





Livro que contém esse poema: 








Os poemas reunidos neste volume ocupam uma posição singular na obra de Drummond. Aqui o autor parece querer buscar, por meio da retomada de formas clássicas, um equilíbrio entre o passado e o presente. O amor, a morte e a memória são alguns dos temas elaborados por um homem que sempre quis fazer parte do seu próprio tempo. Leitura obrigatória do vestibular da Fuvest.


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